Friday, March 11, 2005

Pó de arroz

O António Maria andava numa azáfama para arranjar quem lhe apanhasse o arroz, pois este já estava bem maduro e o “rola” tinha uma aberta no tempo da malhadeira, uma vez que esta por estes dias andava na rua de Adou de Cima. Ficou aprazado para sexta-feira, com duas mulheres e dois homens na foicinha e outro homem para ajudar no transporte, com uma junta e um carro de bois.

Quando a Beatriz e o filho do meio chegaram à terra do arroz já passava do meio-dia novo; num instante se estendeu uma toalha sobre a erva da mota da valacha, e do açafate saiu a broa e o conduto, regados com uma boa pinga, seguidos de uma sopa de feijão vermelho ainda quentinha. Nesse dia não houve tempo para uma sesta sobre o chão aquecido pelo sol. O tempo urgia, a bateira já estava no esteiro com a água já a subir. Começou a correria dos homens com molhos de arroz à cabeça, num percurso ainda longo que atravessava uma vala, sobre uma tábua, e acabava na bateira logo depois de passar pelo lodo que a maré ainda não cobria.

Finalmente carregada a bateira, e aproveitando a maré quase cheia, lá seguiu o filho do meio do António Maria com a corda sobre o ombro puxando a bateira preta orientada pelo seu pai.

Chegados ao cais do esteiro de Salreu, lá se conseguiu um lugar entre as marés de moliço, onde o carro de bois já esperava. Carregado o arroz, e bem atado ao carro por grosso adibal, segue-se o caminho até à casa de Adou de Cima, passando pelo Cruzeiro do Seixal, numa volta maior mas que atenuava o esforço dos animais, pois o caminho mais curto era pela íngreme ladeira do apeadeiro.

Chegados a casa nem se descarregou o carro pois a malhadeira estava a sair de casa do Manuel Rita seguindo logo para a eira do António Maria. Posicionada, distribui-se um homem para o carro, outro para junto do “malhador”, e outro para a palha; para o filho do meio do António Maria ficou reservada recolha do arroz em gigos de vime, juntamente com a Maria “capada”, que se ofereceu para ajudar. O barulho da malhadeira era ensurdecedor, mas ninguém se queixa, falando apenas aos berros quando necessário.

Acabou a malhação. O “rola”pára a malhadeira e só depois olha para o relógio e diz: dezoito minutos. Nessa altura descansa-se, mesmo sentindo a comichão do pó de arroz em todo o corpo. Era sábado, dia de banho na bacia de zinco, e o calendário da cozinha tinha “18” escrito a lápis, sobre esse dia de 1962.

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